domingo, 2 de dezembro de 2007

Caminheiro

Por onde levam os caminhos. Questionamento básico de quem só avança. Um rumo. Todos os contrários parecem ir melhor. O caminho é o mesmo. Muda tanto quando muda a direção. Mudo eu vou. Mudo os passos. Muda a rua. Medido o medo. Meio termo. Suor ente os dedos. Porque há avanços que só o corpo registra. E a mente, por mais que insista, perde-se nesse vão. Pois os passos levam. Sempre. Mas tiram. Sempre também. Sempre tão bem. Apagados os rastros. Onde pára esse espaço que não diz. Não se diz. Não há dúvida. Tudo é resolvido por amortecedores e alta tecnologia de absorção de impactos. Ninguém apenas vai. Mesmo quando vai só. Só vai cumprir um destino. Talvez glorioso. Abstraído das estatísticas das Ciências. Distraído das magias de butiques chiques. Fará diferença. A repetição ritualística dos exercícios de balística para mostrar que era assim que andava o cadáver. Cada um vê o que quer. O que pode. Escapa. Porque pode chover e lavar os traços do silêncio. Chove sempre que se morre. Chove por dentro. A morte é a chuva dos destinados. E se precipita de lá. O precipício que embebeda e atraí. Musa que despe o corpo de todas as vergonhas. Música que envenena qualquer sentido. Ela não tem direção. Lança apenas perfume. Lança o perfume no dia. Pois o dia é a alma da Morte. Radiante inverso do pânico noturno que nos assalta quando ela vem. Uma onda apaga o caminho. A falta vem e se deixa tomar. Como medo interrompido o caminho desfaz-se atrás dos pés dela. E ela espera adiante. E o caminheiro segue a trilha que já nem existe. Dele embora trilhada por ela. Ela tem paciência e o caminho sabe de seus passos. Mas não tem a ver com isso. Há sim uma sombra que precede o caminho e o refaz incessantemente. E não é nuvem. Nem lágrima. Nem caminho de verdade. Há hipóteses que não param. Há todas essas palavras que orientam e direcionam. Há um elemento intacto que reluz por todo o trajeto. O elemento da grandiosidade. E certo é que se desfaz nessa culpa de colher os corpos destilados por eras. O caminheiro se desfaz na culpa de escolher os copos estilhaçados por elas. As musas que cantam ao longo do caminho. Tão longo quanto a palma da mão de um deus. Onde elas se espalham e seduzem os que falham. Um por vez. A cada vez. Assim que o dia da vida irradia numa palavra que nunca é. Tão logo a palma se feche.

sábado, 8 de setembro de 2007

Estelar

O choro vende nossa alma. Quando nem sabemos o que ela contém. Cristais de segredo que se despedaçam. Não se deixam ver numa tarde de chuva. Rumam para o ralo. Estrelas mortas no buraco negro. Bueiro. Halo. A queima de corpos. Antes celestes. Antenas céleres que nada comunicam. Vermelho é aqui. Como quando os olhos se fecham pro sol. Frecham o medo mesmo no escuro. E correm as ruas notícias de amanhã. E correm às ruas os fantasmas que nunca morreram. Nunca nasceram. E esquecem que a timidez executa. Esquecem que à timidez nada intimida. Esquecem a escuta e derivam... Esquecem papéis soberbamente desempenhados. O do poeta que retorna e traz o seu grande poema cravado em suas costas. O dos espelhos que se partem sempre. E um terceiro que hesita em deixar o camarim. As cotas extrapolam os olhos. O choro que borra a maquilagem. A máquina que reconstrói o tecido de inocência. O tremor que abala a cidade deserta. Pois o shopping paira elevado. E desperta a montanha que se derretia na calma de milênios. E morre. E jaz nas casas. Nas horas. Nas rodas. Engrena o silêncio metropolitano. E avança periférica. E atropela o sonho da árvore centenária. Assim que a centelha se espalha. Do espaço, o satélite espelha os olhos marcianos. E a espada se apaga. Não mais a chama sagrada. Que só uma lágrima pura podia apagar. Ais sintetizados. Com patentes reversas. Com destinação perversa. Como um demônio que acordasse e visse uma tela das polegadas de um rei morto e dormisse como uma criança no colo materno. Mutar. Matar. Pode ser só uma questão de crença. Ativaram a doença quando o pecado nasceu. Inferno. Assinaram a sentença quando Deus retirou-se do pátio e assinou a concordata. Concordo com nada. Nego a virtude dos teus olhos. E ela acha que é só charme. Retiro o enxame de idéias. Incendeio meus cabelos. E caminho com uma calma inusitada em plena tarde de chuva. Porque só se molham os que temem. Só tremem os que pensam. E morrem os que assistem. Quem participa nunca existiu. Quem paparica muito resistiu. E versou um carinho que justifica. Pois dos justos teremos a cabeça. Mas nada do baixo ventre. Pois é justo o que se faz a quatro paredes. É justo prender as lágrimas. É justo embebedar-se numa canção abafada pelo ruflar da memória abortada. E acalmar-se quando a calma acaba, sorrateira no rodapé do céu.

domingo, 2 de setembro de 2007

Remanescente

Não tem a ver com tornar-me amargo. É uma casa vazia e um coração ausente. É assim que vejo. Daqui onde horizontes se cruzam e formam perfis de mulheres que deveriam estar mortas. Ou pelo menos esquecidas. Minha mãe, minhas amadas. Todas aquelas que se perdem no silêncio dessa casa que zomba de mim. Minha casa. Assombrada pela minha ausência. Tranquei-me por fora. Detive a fera lá dentro. Agora moro na rua. Perambulo pelas ruas tortas e pelas retas me perco. Mas de noite sempre volto. Espreito o interior. E sempre decido esperar. Agora morro na rua. Morro por dentro, pois a fera destrói tudo. E dói o fora. Incapaz e covarde. Preguiçoso talvez. E não há uma hora certa. Ela sempre já passou. Há um perfeito círculo pelo qual dou voltas e voltas. A falha nunca me encontra. Há três coisas nesse círculo. Fome. Fé. E uma terceira que se esquece das horas. Basta tomar um banho. Fingir um pouco de vida. Porque nos nossos dias, ser do contra é ser feliz. Como se a chave estivesse sempre por fora. Mas não há coragem para entrar. Não há o que rever. E se já houve, não se escuta mais seus sussurros dentro da casa fechada como uma noite. Brilha o dia e o sol anuncia silêncio. Ainda que as flores sejam de verdade. Os rios estão concretados. Como eu que viro e volto em torno dessa casa-eu-mesmo. Sem saída. Sem cortina nas janelas. Pois estou preso por fora. Entrar pode ser estar livre. Mas quem quer estar diante do vazio e resistir. E ressuscitar. E voltar. E dizer que lá dentro mora um anjo, nem lá dentro nem nessa rua. Talvez no inferno haja algum aprisionado. Currado incessantemente. Por suas virtudes inquebráveis. E ouço vozes femininas sob o guarda-chuva. O mistério do semi-rosto. O semi-riso. Semi-serrado avanço. Que é sempre pra trás. Como quem descumpre o contrato. Quem volta um vídeo. E faz tudo errado diferente de novo. A casa fede a fezes. Os corpos das virtudes desencarnadas. A fera se alimenta delas. De todo o potencial que elas deveriam ter. Porque a fera se alimenta do que não deixou existir. E fica gorda e flatulenta. Mas nunca percebe que exala o artificial. Que exalta o bestial que nos compõe. Mas eu vejo a foto. Talvez de mamãe. E torno-me educado como deveria ser. Uso guardanapo e os talheres certos. E nunca olho nos olhos. Nem falo com as mãos. Como as mães gostam. Como a fera se esgota com esses rituais de copa e promessas de espelho de banheiro.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Grandioso

Ando pela rua. É de madrugada e faz frio. Penso que toda pessoa, na hora da morte, tem que ter um pensamento grandioso. Penso isso porque sempre me imagino morrendo numa madrugada assim, no meio da rua. O frio se vai e algo de glória, talvez um calor, enche meu peito. Tiro as mãos dos bolsos e avanço. Sinto uma fé tomando conta de mim. Vou pelo trecho novo de calçada. Como se feito pra mim. Nem vejo o gigante esculpido que por tantas noites me assustou. Passo pelos restos que os lixeiros não levaram. A noite está enfumaçada. Tudo faz muito sentido a essa hora tão propícia para a morte. O ladrilho da calçada se torna um mapa que aponta pra ele mesmo. Os passos, nesse momento, tornam-se grandiosos, atravessam o mundo e me vejo, num relance, numa rua de Amsterdã. Sem saber como fui parar lá nem como voltar ou saber como sei que lá é Amsterdã. Apenas sei. E vivo todas as orgias que uma noite em Amsterdã permite. Me embriago e enfumaço meu olhar. Haverá pássaros na manhã de Amsterdã? Não saberei por que já não estou lá. Os passos dominam o mundo, dominam o medo, me dominam. Não posso parar de andar. E atravesso muralhas e muros e estou de volta. De tantos lugares que queria visitar, paro no ladrilho seguinte, o outro era, talvez, um portal único para as noites de Amsterdã. A viagem mais longa, mais rápida e sem sentido que já fiz e que jamais farei. Posso ouvir o ruído do motor se aproximando. Vem em câmera lenta. Como só aos sons é permitido proceder na madrugada. O ruído vem antes e me flagra com mãos no portão gelado. Não há escapatória agora. Há um medo bobo de morrer sem ter feito nada. Nada para eles que vão me matar. Nada pra mim. Que não tenho vivido uma noite sequer em Amsterdã. Penso se isso é grandioso. O medo será grandioso? Existe algum monumento aos medrosos? Quem sabe em Amsterdã. Pois eu não sei. Passei uma noite lá e não senti o cheiro do medo. Também não senti o cheiro da alegria inocente das ruas transversais e servidões. Um instante mundo em que tremulei como flâmula arrebatada. Um instante mudo em que o silêncio me acusa, me faz alvo. Três coisas me recordo de Amsterdã. Da cortesã afegã que fugia das obviedades de seu clã. Da anoréxica modelo que disfarçava sob os óculos escuros e peruca loira. E uma terceira que não pôde voltar comigo. O carro finalmente passa e me entrego à calma gelada da vida preservada.

domingo, 12 de agosto de 2007

Binário

Certas palavras voltam à tona. Agora a fome administrada. Outros gostos vão se refazendo. Alguns rostos renascendo. E fotos três por quatro amareladas. Memórias retidas em movimentos peristálticos. Pode ser que acabe logo. Há três coisas agora. Fome sincronizada. Relógio de ponto. E uma terceira que o final do mês conta. Há a habilidade de esconder-se por trás da própria voz. E sorrir só pra si. E chorar nunca. É demais mesmo. Sentir o ar em sintonia. Cavucar os arquivos de quem quer dormir quieto. Apenas. Ossos do ofício. Adentrar orifícios munido de credenciais. Despertar o sono da difícil dama do assento ao lado. Descartar as boas vontades escamoteadas em sussurros e desejos reprimidos. Deslanchar com a idéia de libertar todos os pombos do mundo da missão de entregar mensagens. De paz ou de guerra. Pode haver um lugar que não esteja doente nesse trajeto. Retire o traje de contenção. É apenas ar. E nada muda tão rápido que não possa ser fotografado. Atualiza o catálogo de medos e despeça-se da certeza que juravas ter. Porque eu não tenho mais tempo. Nem paciência. Assassinei tudo. Em nome de uma ciência vã construí um castelo de teses e referências bibliográficas raras. Como o nome do poeta nunca lido. Rodeado por acadêmicos, lentos em seu bocejar. Anêmicos na alegria de resgatar outro esqueleto. Não há o que fazer. Até que a morte se repare. Coisas que dignificam. Constroem caráter e devolvem a estima que nunca se teve. Talvez não se aplique nessa temperatura. Talvez nunca decole e nem atravesse mar algum. Mas é uma equipe que se forma. E a norma vigora de agora em diante. Assim decorada. Quase rimada com ela mesma. Expelida com o ar que se condensa no frio. Há um lugar comum aqui. Uma vala de todos. Para todos. Elaborada. Cartografada, revista e ampliada. Em edições semanais de seis por um. Há uma teia que se tece. E desce pelo mapa. Se espalha pela capa de revistas e some diante de monitores vivos - humanos acima de tudo. Prontos a registrar o mínimo desgaste. A entregar a cabeça em nome da função. Pode ser que haja lembranças de um tempo em que tudo soava como um trote. Troque agora suas indelicadezas. Carregue seu arsenal de frieza e sinceridade pré-cozida. A comida estragou. A corrida mal começou. E se corre sozinho. Embora acompanhado. Foragido quase. Diluído na certeza que só aponta pra cima. E valoriza quem é um e não zero.

sábado, 4 de agosto de 2007

Encanto

Sempre há um mundo pra salvar. Desde que ele não seja aquele que você deseja. Gosto de vê-la andar pelas ruas. Acho que ainda não me acostumei. Mas há um planeta lá fora. E a planta de um novo prédio aflora. Olho com tédio as vidraças azuladas. Grandes moscas varejeiras. Mas quem vai dizer que o mundo não é isso? Um grande mercado repleto de moscas de existências fugazes. Quando for tarde demais, todos vão dizer. Ou todos teriam dito. Ou todos gritariam. Mas seria um grito mudo. Ou um grito pra ouvidos surdos. Aquela casinha estava lá descascando. A árvore foi a única a comparecer ao seu próprio funeral. Guardava seu corpo pela noite que se fazia. Há sempre um mundo pra salvar. Da fome. Do amor. E de uma terceira coisa cuja temporada ainda não chegou. Há essas pequenas coisas. Mais visíveis que grandes tragédias. Alguém tem que falar delas. Das histórias ínfimas. Um menino no supermercado dia após dia. O cão de rua atropelado. A natureza que a cidade cobre de concreto. A beleza de tudo isso. Não há isso. Não há nada de beleza. Se engana quem não vê. Categoricamente, há carros passando. Poucos. Há uma lua: outdoors. Nesse momento, quase me sinto americano. Herdeiro legítimo do mundo. E é isso que querem me tirar(?) Como isso pode ser dividido(?) É preciso salvar algo. Talvez apenas algumas consciências. Talvez a minha. Talvez a dela. E o clichê de salvar a sua. A lua está muito longe. O que fazer pra nos livrarmos dela? O que fazer pra livrá-la das pegadas? Talvez seja culpa da Poesia. A lua romântica se misturando ao concreto. Rendendo um verso (ainda) sem sabor. Gosto de vê-la caminhar pela rua. Porque ela me mostra a cidade dos seus olhos. Me pergunto se ela vê a minha cidade. Qual a importância de uma borboleta pra minha cidade? Há uma pequena magia disso ser uma gota de orvalho na ponta de uma folha. Pronta a lançar-se, comungar com a calçada cimentada. Há um feitiço vindo disso. Da lua ciumenta de seu reflexo estampado na poça da rua. Agora que os poetas dormem de meias e os astronautas não comem maçãs. Amanhã talvez venha uma criança que explique o que fazia na porta do supermercado. Hoje ela dorme. Indiferente à lua, São Jorge ou Dragão. Ela sabe do frio do chão. Amanhã talvez veleje ou jogue bola. E os noticiários anunciarão outro vencedor a encantar o mundo. Dificilmente algum poeta (antes que ele escorra com a lua numa boca-de-lobo).

sábado, 28 de julho de 2007

Parábola

Talvez fosse só plantar umas sementes. Depois se distribui e tudo será sanado. Sombra e tempo bom. Duas coisas sem precedentes. E uma terceira ainda germinando. Fazia calor naquela noite. E ela e a terra e a umidade. E uma ou outra alma viva. Talvez menos do que imaginava. Mas havia um limite. Um limite pra inércia. E as benzedeiras avisaram. Havia que mastigar o broto virgem da árvore grisalha. As intenções são óbvias. E não se culpe. Nem se desculpe. Ninguém sabe o que se ganharia com isso. Acabou-se a coleção de remorsos. Talvez um terceiro momento. Escondido entre os milhares de olhos e olhares. Talvez um terceiro tempo. Inaudito e inacabado. Fazendo-se ruínas por picardia. Destroços do melhor nunca desfrutado. O fruto que nunca foi original. Porque um anjo provou antes dos pecadores. E esse anjo morreu. E de suas asas se fizeram os pássaros. E de seus olhos foi feito o céu. E suas lágrimas encheram os mares. E seus cabelos viraram raízes. E de seus dentes se incrustaram jóias na terra. Que foi feita de suas cinzas. Das suas unhas se fez o homem. E a mulher brotou de sua língua. A última coisa que se sabe é que suas tripas tornaram-se serpentes. Egoísta assim. No melhor sentido do termo. E as plantas aqui estão. Entre vasos. Nos vãos dos prédios. As frutas aqui estão. Nos cestos, nas feiras, nas bocas, no chão, voltando ao anjo. E ela pacientemente ensina algo. Que possivelmente não adiante. Mas essa é a hora de gritar. A hora em que se tem vontade. Quando se necessita. Que grito calado vira pedra. Ataca os rins. Fere o coração. Então se misture à terra. Esse anjo morto em construção. De sangue esgotado em veias podres sem minérios. Meneia a cabeça e acende uma vela aos mistérios. Pode tudo aqui. Desde que haja fé. Essa fruta rara que floresceu do cérebro do anjo. E ela esfrega as mãos. E suja o rosto prazerosamente. Marcas de uma eternidade. E seu silêncio não será pecado. Porque não houve. Se ouve um berreiro. A multidão de uma voz. Eu tapo os ouvidos. Egoísta sim. Porque é bom olhar o que se quer dividir. Pra não passar adiante a parte podre. Ela sorri e comenta minha mudez. Nunca nu como o anjo morto. Corpo revirado em estradas e túneis. Mas há os bravos. Não eu. Talvez. Que fujo e me distancio. Que acendo velas sem porquês. Que aprendi a olhar as coisas como criança. Pra depois deformá-las com os olhos de adulto.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Escritório

O óbvio na boca dos medíocres sempre soa genial. Esperei pra ver se ela vinha. Era um dia especial. Nada de novo sob o sol, mas um cheiro bom no ar. Três coisas restando. Tristezas resistindo enquanto caminho no céu. Nada que não passe. Nada que não me ofereçam, mas hoje dobro as esquinas com a certeza da esquiva alheia. Dia de sair de casa. De cumprir rituais. Três coisas contando. Fome, amor e uma terceira que só os amigos entendem. Me afastei um instante e a janela era armadilha. Uma trilha desenhada em notas de branco nuvem. Pros sons que vem. Pros sons que vão. Provas embutidas em simples caminhadas. Sonhos sempre morrem ao acordar. Se não há memória, habitat artificial do sonho, do criador e do tédio de não repetir o acerto. O cetro passa muito pouco. Realeza não se sabe ao certo. Fingi que não vi, pois sou tímido. Encarei a calçada. Não hoje que andei macio. Ela não acreditaria. Até me adiantei e estendi o tapete, pois queria o veludo azul sob os pés. A leveza de um ombro. A maciez de um colo. A beleza de um sono. Tranqüilo, evito o frio. Hoje o dia passou. E ela madrugada. Eu sereno ao meio-dia. Fim de tarde e penumbra de cobertas. O que faz pensar que nada muda totalmente. Nada permanece, a não ser o nada que intercala pequenos vilarejos de astros. As estradas, se havia, não eram necessárias. As estrelas se riam do tolo desejo infante. Mas, infame, foi capturado um raio de sol refletido, em prata convertido. E tudo era cenário que as paredes escondiam. E ardiam luzes na febre do perfeito. E palavras escorriam sobre a fronha. E embaixo se abria a semente. Fácil como usar amuletos e escrever cartas. Foi como anexar um território hostil em que o vencido ignora o vencedor. Ela sabia desde sempre. Eu pestanejo e invento outra tarefa. Bloqueio o sinal que vai chegar. Interpreto a calma como o momento a ser ignorado. Mas o olho reprime e as mãos não esboçam interesse. E lógico sempre parece. Como receitas de senso comum. Mas não é a isso que pertenço. Sendo mais exato. Hoje dei quatrocentos e setenta e seis passos. Subi umas três dúzias de degraus. Acabei me confundindo nas maçanetas. Acampei diante da minha cama e rezei em nome dos que não me venceram. Acordei três vezes hoje. E em todas elas era eu mesmo. Sem invenção que não os artifícios que a linguagem me obriga. Hoje essa língua se perdeu. E a noite reaparece como o rito de voltar a falar.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Orçamento

“O salário do pecado é a morte” poderia estar pixado num muro sobre um desenho de Basquiat. Mas saía de sua boca, pouco antes da morte, do desenlace embaraçoso e quase insano. Não sei muita coisa sobre isso. Não estava lá. O aviso foi claro e me preparei, me retirei e sorri pro esquife, mais gordo e tranqüilo. Custo a entender esse tempo. Um tempo que passa não programadamente e se repete e esbarra em si mesmo e que me gira e entorna meu copo e que não cura nada. Talvez entulhe. Talvez anule. Talvez segure. Talvez encurte. Talvez desista. Mas não cura. Nada até agora diz o que falta. A falha não cabe aqui. O hiato se perde entre o dia de sol e a veneziana. E as sombras artificiais somente ressaltam as manchas que deslizam pelo corpo entorpecido pela impotência, pelo cansaço de ter pena de si mesmo. Foi mais um dia. Aquele e esse. A terra vermelha, o dia cinza, de vento amarelo. Um dia de refletir a fome que os vermes manifestam. Uma fome encomendada, orçamentada em toda fatura de vida. Quanto custa esse precioso serviço? O divino cobra quando menos se espera e o humano se manifesta onde menos se quer. Faturas diárias de vidas fraturadas. Futuras dívidas de dias frustrados. Assim se esquece o céu. E os olvidados respiraram antes da próxima bruma. Aliviados os anjos ignoraram os preferidos. Eu penso em fama, em ato falho constante. Penso em fome e amor. Duas coisas que faltam a cadáveres. Há uma terceira que só os vermes sabem. Penso no descrédito que alimento. A falta de forma da qual ela me acusou. Mas moldo o informe porque posso tecer com fios de aço inox reluzente. E invento armaduras que ameaçam os tolos e afastam os desprevenidos. Os poucos que avançam nunca voltaram para contar. Há um limite ali. Um juramento silencioso. O advento licencioso de uma calma de fio afiado que talvez retalhe o tempo. Talvez traga de volta pequenos enigmas que a criança adorava encarar. Pequenos delitos que a sisudez adulta obriga ainda a se esconder. E o corpo pode voltar a jazer. Nunca inerte porque há sempre algo que pulsa. Algo que anula a irresistível vontade do nada. Há algo que puxa, junta a memória com o porvir da carne. É então que se percebe que a vala é comum. Chamada, talvez, planeta. Então se percebe que não acaba. Simplesmente um prazo se esgota. E há sempre alguém na fila. Agora que o corpo sabe o preço que paga.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Procriar

Quem é esse novo que se anuncia? Que ameaça a comodidade do inconformado. Não comprei nada ainda. Gostaria de um pote de silêncio, com validade indefinida. Ou um silêncio raro, preservado desde a Idade Média. Tudo custa. Muito pra vir pouco pra ir. Imagina um silêncio desses... não gosto de trabalho, nem gostaria de defini-lo. Não gosto e pronto. Não queria que fosse trabalho o que gosto. Mas queria que desse retorno. De modo velado, é claro. Est ética estampado numa camiseta. Bárbaro como tudo que pode ser cifrado. Não gosto de dinheiro também. Não reclamaria se as coisas só aparecessem pra mim. Mas uma alma satisfeita já desapareceu quando se encontram os esqueletos em seu armário. Gostaria de falar de alguém que vive numa casa que não é sua e que é de todos. Gostaria de uma história pesada sobre subempregos. Gostaria de contar história pras minhas gerações. Mas eu mesmo prefiro os vídeos. Quando filmarão o Ulisses para que eu finalmente o leia? A bomba de água mineral não foi trocada ainda. O metrônomo está travando e ainda não digitei os manuscritos. Como confiar no que virá se vier de mim? Eu sei que não se responde sozinho. Mas quem é ela que contém a meia resposta. Por quem vale a pena assinar o contrato? E eu disse a ela pra pensar mais em si mesma. E eu estou certo. Pode ser pior se perder junto. Ela mora em tantos olhos, em tantas pernas e mãos. Mas todas me fazem pensar na força de trabalho que deve ser vendida pelo seu tempo livre. Nem isso vale o trabalho. O trabalho vale por três coisas. Fome, amor e uma terceira que, dizem, inventaram há muito tempo. O que resta de um homem morto? Sementes, mudas e folhas ao vento. Sobra uma ossada, uma foto em algum lugar e as últimas contas a pagar. Sob o sol, sob a grama dos cemitérios jardins, sobre a lápide um nome. Um homem morto se resume a um assento vago no ônibus, a um assunto na mesa do bar. Um suspiro teatral. Todos cara de inevitabilidade. Remoendo a culpa de ainda estarem vivos e saudáveis: alvos perfeitos pra semana que vem. O que narrar sobre um morto comum, de nome de seu tempo e cicatrizes que desenham uma palma da mão? Eu queria contar a história de um homem que plantou uma sete – copas. Dizem que quem planta essa árvore não vê a última copa brotar. Ele nunca mais voltou a vê-la porque suas superstições eram mais fortes que ele. Pobre pecador.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Recanto

Aqui dentro moro Eu. Dentro de mim. Assim como quem não quer. Assim como viver numa represa. Chove há muito por aqui. Nada que sirva às plantas. Transbordam palavras que não tem papel nem língua. Aqui dentro há três coisas pra sentir. Amor, fome e uma terceira que ainda se esconde. Não amo nenhuma delas. Não totalmente que isso é estar pronto pra morrer. Mas até que queria. Assim, isso seria direto, sem rodeios, com ações intrínsecas e carros capotando. Acho que tenho muito medo da fome. Não da minha. Mas de alguma que possa me rodear. Amar uma fome pode ser muito perigoso. Por isso, talvez, amo o medo. Pino da granada e válvula de escape. Essas metáforas da vida afora. Filosofia de comédia romântica, o espírito do nosso tempo. O medo se multiplica quando e porque é mutilado. Eu moro aqui dentro. Sem nenhum objetivo grandioso. É o que costumo dizer. Grande potencial. É o que costumam dizer. É preciso costurar a manga e comprar botões. Aqui dentro moram braços e pernas e uma barriga saliente. Comprar é palavra que faz bem. ‘É bom’. Aqui dentro mora uma fera. Um anjo, me disseram. Ainda bem que não tenho a espada de fogo. Minha justiça seria míope. Uma canção agora soaria falsa. Como muitas febres que salvam o dia. Lá fora há um Império de sentidos e imperfeições. Aqui dentro eu abstraio e traio a tantos perdões. Porque quando acaba o limite não há mais porque gritar. Hoje pensei sobre o choro. Fora filmes bobos e quando meu pai saía e eu temia que nunca mais voltasse, chorei duas vezes um choro copioso e soluçado. Uma por você outra quando ele não voltou mesmo. Então acho que foi aí que me ilhei. E tudo parece com a pilha acabada. Eu queria contar uma história. Da casa que cai. Do menino que cresce. Mas é a casca que cresce e o menino que encolhe. Vira feto na última idade. Talvez reconheça o afeto que o cerca. Mas tem medo e orgulho de dizer que lá no fundo isso seja algo próximo de ser feliz. Porque quando a porta se fecha os outros estão lá, de barriga cheia e peles coradas. Ela devia saber disso. Que há sempre uma porta fechando. Talvez seja hora de fechar a minha. Ou talvez quebrar a casca. Abrir as comportas e chorar uma terceira vez. Copiosa e soluçadamente. Porque não há solução pronta em tamanho P, M e G. Há espaço pra mais um desde que o outro saía, enquanto milhares dizem em uníssono que aqui dentro moro Eu.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Nódulo

Não há porque se levantar. Sempre penso nisso. Mas a bexiga logo avisa, exige. Tem feito frio, o que é bom. É bom ouvir música e dormir. Tanta coisa “é bom”. Sobretudo o que não se tem. Comi minha última maçã. Ainda resta feijão. Ganhei macarrão, milho e soja. Sempre ganho algo. Essas recompensas por ser amado de algum modo. Sempre há um modo. E no fim das contas mantenho a dignidade. Circulo entre todos como igual. Mesmo com os punhos e bainhas rotas. Um arame amarrado num poste rasgou uma camisa que eu gosto. Eu tenho linha e agulha e uma explicação. Uma boa história faz o coitado. Por isso é preciso parar os rodeios. Eu tenho uma intenção aqui: te convencer e ponto. Pronto. Simples assim. Sem cerimônias. Não há mais sobre o que escrever e sim porquês pra se escrever. No fundo cada linha pode ser biografia do mundo. Então sobre o que se pode escrever? Presente. Passado. Futuro. Eu atendo telefone e a voz dela está lá. Uma metralhadora em meu coração. Música pro ouvido. Ela quer me mostrar algo. Eu sinto algo. Normalmente sinto duas coisas. Fome e vazio. O bom disso é que o vazio, muitas vezes, é parecido com a fome: se contenta com bastante gordura e Coca-cola. Mas dura pouco esse aceite. Então resta ter fome e comer a última maçã das que ela me deu. Parece que o vazio se preenche com gente. Mas também dura pouco porque não se pode prender ninguém. Olho as linhas escritas no papel e imagino que não há o que esperar. Já esperei demais. Sobretudo de mim. O que eu quero? Uma notificação oficial no Diário da União? Sim. Amor e fome podem ser sinônimos. Sabe, pegar na mão é sentir a alma. Eu nunca fui de toques. Nunca fui de beija-beija-beija as bochechas. Talvez eu tenha perdido com isso. Uma mão espelha pros dois lados. Dentro e fora. Hoje pratico mais, questão de sociabilidade, mas é algo sincero. E ela nunca me beijou. Não desse jeito. Nem eu. Abraços e mãos são o que gosto de sentir com ela. Diferente porque talvez nunca seja. E confuso. Estar só rodeado, um clichê, talvez, somente humano. Porque ‘talvez’ é nossa sina. Alguém pixou o muro me chamando à luta. Talvez eu lute uma vez mais. Sentado com ela, evitando termos intelectuais, montando uma história, a mais simples, do que é um quebra-cabeças sem todas as peças. Eu estava lá. E nada é claro. Ficam as sugestões e o medo de sirenes noite adentro.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Preâmbulo

Todo princípio tem um ponto. Normalmente numa noite escorregadia em que as coisas não querem dizer nada, apenas se afastam ao contato humano, se revestem de garoa e espantam as mãos quentes. E qual seria a o motivo da teima? Uma canção: areia e mar. Os olhos miram pelas lentes embaçadas a fumaça, do expirar que se condensa. A cabeça vazia esconde fatos e escolhas. Não tem caminho. Por ali ou por lá. Ou por rodeio. O que há é intenção morta. Tensão em carne envelhecendo junto com os sonhos. Escombros do nunca construído. Encontros que levam à perdição. Há a lua, as estrelas, há a rua, os carros. Não falta cenário. Proliferam atalhos. Tantos olhos abertos sem a noção de que estão abertos. Tantas trancas falsas. Todo movimento é cálculo. Todo momento é consumido. Todo casulo é monumento. Luzes acesas. Porque não há trincheiras e nem é guerra por aqui. Há vazios plenamente aceitos e entendidos, não há porque salvar ninguém. A cédula adula a rima mais ignóbil. E muitas cédulas fazem chover. Milagres que o cotidiano inventa e sustenta a pão somente. Porque já se foram os Circos. O palhaço suicidou-se na frente da criança sorridente. E riu-se muito da última piada. Porque retratos alheios não dizem muita coisa. O que é um desconhecido atrapalhando a visão dos Andes? Pausas. Se a música fosse minha ela estaria morta. Um palhaço de lábios grandes e cabeça estourada. Como uma foda frustrada. A roda da fortuna que emperrou. Três coisas nos resumem. Dinheiro. Amor. A terceira prefere-se deixar pro fim. Quando pode acabar se apenas se esvai. A roda que não roda. E tristeza é preciso. Um atalho valioso. Como a água que volta talvez menos pura. Tristeza calculada é o último ato de coragem dos fracos. Os símbolos se perderam, se esvaziaram por um breve momento e foi aí que o produto ganhou importância entre aqueles que se diziam por fora. Quando foi? Não é uma questão de data. É uma questão de olhar no olho e não mais saber. Não é como o lampejo dos amantes, não mais. Circularidade. Secularidade. Curiosidade. Caridade talvez. Tempos de muito talvez se houver tempo. Tempo contado. Gasto e suado e caro. Tempo que tilinta. E o alarme soa falso. Satã já desistiu, se alguém quer saber, pediu perdão e goza boa saúde, apesar de reclamar do ar-condicionado. A última anedota contada foi sobre a importância de gerenciar seu próprio tempo antes que todo o tempo passasse.