domingo, 2 de setembro de 2007

Remanescente

Não tem a ver com tornar-me amargo. É uma casa vazia e um coração ausente. É assim que vejo. Daqui onde horizontes se cruzam e formam perfis de mulheres que deveriam estar mortas. Ou pelo menos esquecidas. Minha mãe, minhas amadas. Todas aquelas que se perdem no silêncio dessa casa que zomba de mim. Minha casa. Assombrada pela minha ausência. Tranquei-me por fora. Detive a fera lá dentro. Agora moro na rua. Perambulo pelas ruas tortas e pelas retas me perco. Mas de noite sempre volto. Espreito o interior. E sempre decido esperar. Agora morro na rua. Morro por dentro, pois a fera destrói tudo. E dói o fora. Incapaz e covarde. Preguiçoso talvez. E não há uma hora certa. Ela sempre já passou. Há um perfeito círculo pelo qual dou voltas e voltas. A falha nunca me encontra. Há três coisas nesse círculo. Fome. Fé. E uma terceira que se esquece das horas. Basta tomar um banho. Fingir um pouco de vida. Porque nos nossos dias, ser do contra é ser feliz. Como se a chave estivesse sempre por fora. Mas não há coragem para entrar. Não há o que rever. E se já houve, não se escuta mais seus sussurros dentro da casa fechada como uma noite. Brilha o dia e o sol anuncia silêncio. Ainda que as flores sejam de verdade. Os rios estão concretados. Como eu que viro e volto em torno dessa casa-eu-mesmo. Sem saída. Sem cortina nas janelas. Pois estou preso por fora. Entrar pode ser estar livre. Mas quem quer estar diante do vazio e resistir. E ressuscitar. E voltar. E dizer que lá dentro mora um anjo, nem lá dentro nem nessa rua. Talvez no inferno haja algum aprisionado. Currado incessantemente. Por suas virtudes inquebráveis. E ouço vozes femininas sob o guarda-chuva. O mistério do semi-rosto. O semi-riso. Semi-serrado avanço. Que é sempre pra trás. Como quem descumpre o contrato. Quem volta um vídeo. E faz tudo errado diferente de novo. A casa fede a fezes. Os corpos das virtudes desencarnadas. A fera se alimenta delas. De todo o potencial que elas deveriam ter. Porque a fera se alimenta do que não deixou existir. E fica gorda e flatulenta. Mas nunca percebe que exala o artificial. Que exalta o bestial que nos compõe. Mas eu vejo a foto. Talvez de mamãe. E torno-me educado como deveria ser. Uso guardanapo e os talheres certos. E nunca olho nos olhos. Nem falo com as mãos. Como as mães gostam. Como a fera se esgota com esses rituais de copa e promessas de espelho de banheiro.

2 comentários:

Senhor B disse...

Grande Juniores, tô sempre lendo aqui. Cara, a gente vai reativar o zine do PET, estamos pensando em algo graficamente mais caprichado do que costumava ser, mais pra magazine que pra fanzine, mas com a mesma idéia por trás. Certamente seria muito bom contar com algum texto teu. De repente fazemos uma edição "temática", com algum tema esquisito, tipo "objetos cotidianos" (foi o que eu sugeri na reunião) pra estimular a galera a criar coisas diferentes e estimular a curiosidade dos que vão ler. Diz aí.
Abraço!

Anônimo disse...

quisera eu ter uma casa tão grande quanto a rua...

belo texto!
abraço,
rodrigo