segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Grandioso

Ando pela rua. É de madrugada e faz frio. Penso que toda pessoa, na hora da morte, tem que ter um pensamento grandioso. Penso isso porque sempre me imagino morrendo numa madrugada assim, no meio da rua. O frio se vai e algo de glória, talvez um calor, enche meu peito. Tiro as mãos dos bolsos e avanço. Sinto uma fé tomando conta de mim. Vou pelo trecho novo de calçada. Como se feito pra mim. Nem vejo o gigante esculpido que por tantas noites me assustou. Passo pelos restos que os lixeiros não levaram. A noite está enfumaçada. Tudo faz muito sentido a essa hora tão propícia para a morte. O ladrilho da calçada se torna um mapa que aponta pra ele mesmo. Os passos, nesse momento, tornam-se grandiosos, atravessam o mundo e me vejo, num relance, numa rua de Amsterdã. Sem saber como fui parar lá nem como voltar ou saber como sei que lá é Amsterdã. Apenas sei. E vivo todas as orgias que uma noite em Amsterdã permite. Me embriago e enfumaço meu olhar. Haverá pássaros na manhã de Amsterdã? Não saberei por que já não estou lá. Os passos dominam o mundo, dominam o medo, me dominam. Não posso parar de andar. E atravesso muralhas e muros e estou de volta. De tantos lugares que queria visitar, paro no ladrilho seguinte, o outro era, talvez, um portal único para as noites de Amsterdã. A viagem mais longa, mais rápida e sem sentido que já fiz e que jamais farei. Posso ouvir o ruído do motor se aproximando. Vem em câmera lenta. Como só aos sons é permitido proceder na madrugada. O ruído vem antes e me flagra com mãos no portão gelado. Não há escapatória agora. Há um medo bobo de morrer sem ter feito nada. Nada para eles que vão me matar. Nada pra mim. Que não tenho vivido uma noite sequer em Amsterdã. Penso se isso é grandioso. O medo será grandioso? Existe algum monumento aos medrosos? Quem sabe em Amsterdã. Pois eu não sei. Passei uma noite lá e não senti o cheiro do medo. Também não senti o cheiro da alegria inocente das ruas transversais e servidões. Um instante mundo em que tremulei como flâmula arrebatada. Um instante mudo em que o silêncio me acusa, me faz alvo. Três coisas me recordo de Amsterdã. Da cortesã afegã que fugia das obviedades de seu clã. Da anoréxica modelo que disfarçava sob os óculos escuros e peruca loira. E uma terceira que não pôde voltar comigo. O carro finalmente passa e me entrego à calma gelada da vida preservada.

5 comentários:

Pega Pra Capá Produções disse...

excelente comentar sobre a tal "grandiosidade", e conseguir fazer isso sutilmente. não há nada mais grandioso do que ver amsterdã em um trecho novo de calçada.

literatura de minuto disse...

lê isso ouvindo o Matt Elliott: The Kursk, fica bom.

. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

sinta falta das poucas noites grandiosas caminhadas em paralelo...

Anônimo disse...

" o passos dominam o mundo, dominam o medo me dominam...", adorei, mas gostei particularmente dessa frase.talvez pq me identifique com ela, talvez pq caminhar me leve a devaneios tão profundos,talvez pq ja tenha percorrido o mundo apenas com meus passos.